Um Final Schmaltz
Don 'Toño
Depuratta vivia tranquilamente em qualquer lugar, desfrutando da quietude e beleza do entorno enquanto fazia chá. Certa manhã, uma manhã aparentemente igual a todas as manhãs e sem qualquer ambição própria de ser uma manhã diferente, um jovem de barba branca e longos cabelos azuis viu Depuratta enquanto esta seguia seu ritual diário de preparar chá. E apaixonou-se, ou assim ele pensou.
- Olá - disse o jovem, já cheio de esperanças e imagens mentais fantasiosas.
- Qual é o teu nome, doce criatura? - continou ele, com ar animado.
- Chamo-me Depuratta - foi a resposta, sem qualquer tipo de ênfase.
- Depuratta... é um belo nome, ainda que pouco usual - disse, adicionando esta informação às projeções futuras em sua cabeça.
- Gosto de pensar que não existe ninguém mais com o mesmo nome; me sinto especial assim - falou Depuratta, com um aspecto orgulhoso e ligeiramente presunçoso.
- Um nome especial para uma garota especial... Diga-me, por acaso tens um namorado? - perguntou o jovem, muito animado e sentindo-se galanteador.
- Não tenho, e na verdade nunca tive - respondeu, já pouco confiante de que gostaria ouvir o resto do que o jovem tinha a lhe dizer.
- Ah, que bom saber... Eu não costumo ser assim... me sentir assim, quero dizer... Mas quando te vi, logo soube que era a garota especial, como a gente lê nos romances e vê nos filmes... - foi dizendo o jovem, graciosamente.
- Então... quer ser minha namorada? Prometo que vou sempre te amar e te respeitar, e te dar tudo o que quiser, e limpar suas lágrimas e cobrir o sol quando estiver muito quente, e... - continou ele, cada vez mais inflamado e envolto em devaneios.
- Pare! - interrompeu Depuratta, agora enfática - Olha... me desculpa, viu, cara... mas não estou interessada. - completou, virando-se de lado.
- Mas... por quê? Por quê não me quer? - indagou o jovem, com a voz queixosa
- Não tem nada a ver com você... sou eu. Só não tenho interesse em namorar - disse ela, sem querer ferir sentimentos.
- Não me achou bonito, não é? Porque os meus cabelos e barba não são da mesma cor, não é? - inquiriu ele, com tom quase acusativo.
- Não, cara... o que acho de ti fisicamente não importa... não é relevante... como eu disse, não tenho interesse nisso, só quero continuar fazendo o que gosto: preparar e beber chá. - explicou Depuratta com honestidade.
- Mas todos procuram sua metade, sua alma gêmea... por que você seria diferente? Eu não acredito! Me achou chato, não é? Pode dizer a verdade... - disparou o jovem, já mostrando uma certa irritação, e demonstrando que as fantasias anteriores começavam a se desfazer
- Olha... nem todos procuram sua "metade"... algumas pessoas se sentem completas simplesmente por serem quem são... e as que não se sentem assim deveriam primeiro buscar esse sentimento de completude sem depender dos outros, sabe? - disse-lhe Depuratta, agora tomada de compaixão por ver o quão fora da realidade vivia o jovem.
- Não... NÃO! Essa completude que mencionou... desse jeito... não é possível. Eu nunca senti isso ou conheci alguém que se sentisse assim... É mentira! - argumentou o jovem, muito inquieto e tomado por insegurança - Sei que me achou chato... e como não acharia? Nem me deu uma chance de mostrar como eu sou de verdade! Me fez falar desse jeito chato! - completou.
Depuratta agora não sabia o que fazer ou dizer. O jovem era cheio de ilusões e conceitos formados a partir de uma visão de mundo limitada e inflexível. Seus pensamentos e atitudes eram manifestações puras de egocentrismo. E agora, como se não bastasse, ele ainda a culpava por uma percepção que construíra de si mesmo como sendo chato. E ela teve pena, mas, ao mesmo tempo, ainda que sem querer, o achava chato mesmo.
Decidiu que era melhor voltar a ocupar-se do que lhe interessava e do que sabia como lidar, e retomou o preparo do chá.
- Ah, agora ainda vai me ignorar, é isso? Vai bancar a indiferente? - manifestou-se o jovem, agora completamente alterado e com o semblante e a postura completamente irreconhecíveis diante do que havia mostrado anteriormente
- Eu te amo! Eu te AMO! E tu me despreza... Não sei como me apaixonei assim por uma puta como tu. Sua vadia suja! - explodiu com raiva.
Depuratta agora sabia que o jovem era muito perturbado e o esforço para que um dia ele pudesse agir decentemente e fosse feliz seria demasiado, e que ela não seria capaz de ajudar. E já estava farta daquilo, mas continou preparando chá. Agiu como se ele não estivesse mais ali despejando todas as ofensas que habitualmente os machos desferem contra as fêmeas.
- Eu vou ficar aqui até que demonstre alguma coisa, ouviu, sua piranhazinha? EU TE QUERO! EU TE AMO E QUERO TE COMER! SEU DEPÓSITO DE...
Depuratta abriu a despensa onde guardava seus apetrechos para o preparo de chá e outras coisas que julgava importantes de se guardar, pegou uma escopeta que guardava atrás dos pacotes de bolo instantâneo e disparou contra a cabeça do jovem, espalhando e misturando o branco da barba e o azul dos cabelos com o vermelho do sangue que jorrava copiosamente.
Agora aliviada, Depuratta pôde terminar o ritual de preparo, e, enfim, tomar chá em paz e feliz com seus amigos chazinhos.
- FIM DO PRIMEIRO E ÚNICO ATO